Dentre tantas quinquilharias apreendidas apreendidas, um caixote de madeira, encontrado na sede do Sindicato dos Mineiros de Nova Lima, jogado em um canto da garagem, ilustra bem a que ponto chegavam as forças policiais em busca de material subversivo. Tratava-se simplesmente de um caixote vazio de madeira, apanhado em Belo Horizonte, no Sindicato dos Bancários, pouco tempo antes, para servir de assento na Rural Willis do Sindicato, a fim de que se pudesse dar carona a umas mulheres que iam para Nova Lima. O desapetrechado veículo não tinha os bancos que pudessem servir às caronas.
O dito e desprentecioso caixote tinha a infelicidade de trazer escrito em uma de suas tábuas a palavra Checoslováquia, o que bastou para incriminá-lo. Apreendido pelas forças revolucionárias logo depois da invasão do Sindicato, foi considerado perigoso pelas autoridades do Golpe Militar, pois poderia ter sido embalagem de possíveis armas importadas de países comunistas. Material subversivo! O delegado Diocélio chegou a dizer, em entrevista a imprensa, que o caixote "segundo tudo indicava, continha armas. Pelo menos foram encontrados no seu interior papéis próprios para o acondicionamento de armamento". E prometia, do alto de sua autoridade, que iria "diligenciar e despender esforços no sentido de esclarecer, não somente estes detalhes, como todos os outros que possam servir para punição de todos aqueles que estiveram direta ou indiretamente a serviço dos vermelhos em nosso País".
O motorista da rural, Sr. José Raimundo Nonato Couto e o Presidente José Alexandre foram intimados pelo Delegado Dr. Diocélio para esclarecerem a origem e a importância daquele caixote no qual poderiam ter chegado ao Sindicato armas pesadas vindas da "cortina de ferro". Essas armas tinham que ser encontradas, era o convencimento do doutor delegado.
Quanto às armas realmente encontradas em poder daquela gente "terrorista e perigosa", o ridículo chega às raias da paranóia, porque, na verdade, não se pode dizer que existia um asenal. Foram recolhidas algumas poucas de uso pessoal e doméstico, sem qualquer poderio de confronto. São tão poucas que precisam ser relacionadas aqui, sob pena de não se acreditar na sua impotência bélica. Chega a ser grotesco falar-se em resistência armada com o que ali foi encontrado. Eram aramas tais que não socorreriam nem mesmo a prática da contravenção de uma caçada de paca, ou de tatu. Vejam a relação das armas apreendidas em Nova Lima, naquela época:
- 1 garrucha calibre 320 (marca Amazônia, niquelada, cabo de talas de ebonite, s/nº.
- 1 pistola parabellum (marca Lugner, cal).P.38, oxidada, cabo de madeira nº 4142.
- 1 garrucha calibre 22 (marca Rossi, de dois canos, cabos de talas de ebonite, niquelada.
- 1 faca tipo punhal, cabo de chifre.
O que caracterizou a ação dos agentes golpistas de 64 foi a violência e a brutalidade; uma operação massacre arbitrária, sem qualquer critério. A marca dolorida de qualquer ditadura, quando a verdade é única e está sempre com o ditador.
- Foi uma agressão brutal, quando recolheram minhas lanternas, enquanto minha esposa pedia que fizessem aquilo. Era uma lembrança e tinha relevante utilidade, porque faltava muita energia e, às vezes, ficávamos no escuro - narrou Alberto Lemos Mota. - Agrediram-na, dizendo, comunista sem vergonha tem que ficar é no escuro mesmo! Minha esposa chorava.
Naqueles dias a escuridão foi profunda em Nova Lima e arredores. O direito saiu de cena e o autoritarismo era absoluto. Não havia limites para a violência e a agressão. Qualquer hora da madrugada era propícia para a invasão do domicílio de um suspeito. O agente mor determinava aos subordinados, - vá buscar fulano ou sicrano - e, em poucos minutos, uma residência era arrombada e o trabalhador tirado da cama e levado para a cadeia. Depois, na hora que pudesse seria ouvido, muitas vezes, dias após a prisão. Não havia escolha pelos agentes golpistas entre a violência física ou a moral. Tinham preferência pelas duas ao mesmo tempo. Constrangimento moral que alcançava toda a família, e tortura física sempre que fosse possível. "Vamos acabar com essa praga de uma vez", era o que diziam.
Foi um tempo de penúria, famílias passando necessidades de todo tipo. Presos como Militão tiveram que merecer a "compaixão" das autoridades militares para receber o auxílio prisional, em virtude da extrema probreza da esposa e filhos. Havia a lei que dava esse direito ao presidiários; mas, os mineiros de Nova Lima eram presos especiais, porque estavam à disposição das autoridades militares, por simples arbítrio, sem atendimento às determinações legais. Eram presos de fato; mas não de direito. As prisões eram discricionárias, não dependiam de flagrante ou de mandato. Também nunca se sabia por quanto tempo - Muitas prisões foram efetuadas com o arrombamnto à noite das casas dos presos. Alguns eram libertados no dia seguinte; outros ficavam presos por meses e até por anos, - expôs, com mágoa, o processado Otacílio Correia, daquelas paragens bucólicas de Honório Bicalho.
Militão dizia, também, que no dia em que a passeata foi impedida pelas forças militares, muitos dos que foram presos foram violentados e comentava: - O que é mais duro de aguentar é que havia dedo duro, "Joquim Silvério dos Reis" entre nós. Durante o processo houve quem se vendesse à empresa para acusar colega. Isto é o que mais me revolta - acrescentou.
os interrogatórios dos acusados venceram o mês de abril ultrapassaram maio e só foram concluídos em junho. Dona Maria Silva fez o seu depoimento ao Departamento de Ordem Política e Social, o temido DOPS, no dia nove de maio de 1964. Sua vida pessoal e sua atuação política foram vasculhadas. Filha de José do Nascimento Silva e de Maria Perez, ela nascera em Nova Lima, no dia 21 de agosto de 1930. Na época do inquérido, residia na rua Melo Viana, 252, na mesma cidade.
Ao delegado Diocélio de Oliveira Cabral contou que há treze anos exercia a profissão de professora primária no Grupo Escolar Diniz Vale, e que, além de professora primária, também exercia as funções de Diretora do Ginásio Comercial Tiradentes, desde a sua fundação em setembro de 1962, até 31 de março de 1964 quando, arbitrariamente, foi destituída do cargo.
Para arrancar confissões dos mineiros presos lodo após o golpe, a polícia da Ditadura lançava mão de todos os expedientes. Valia tudo. Em Aloysio Vieira, cidadão local, via-se nele as marcas da grande agressão que sofrera.
Na noite de de 1º para 2 de Abril, ele para não se comprometer com o movimento de repressão instalado na cidade, foi acordado às 2 horas da madrugada e, quando abriu os olhos, havia quatro baionetas apontadas para ele. Os homens diziam, "levante rápido, viemos te buscar". Ele era um simples funcionário burocrático do Sindicato. Chegaram, bateram na porta, a esposa dele assustada a abriu, o que facilitou a invasão. Muitos trabalhadores tiveram a casa arrombada durante aquela noite. Levaram-no e o colocaram numa prisão imunda sem qualquer palavra. Só foram ouvi-lo vários dias depois.
Em uma crise de emoção, Aloysio Vieira relatou o que aconteceu com Joaquim Mariano de Oliveira, o "Boa Conversa" e com Dona Maria Silva.
Lembra-se do Boa Conversa, aquele homem esguio, forte, bonito, muito franco e firme em suas convicções? Pois é, Para alquebrá-lo fizeram com ele todo tipo de torpeza, inclusive, submetendo-o na presença de um grupo de sádicos, aos apetites de um tarado. E com Dona Maria Silva, também não deixaram por menos, levaram-na ao máximo de humilhação.
Para justificar a truculência das operações contra os acusados, a Polícia da Ditadura pintava com cores fortes os "antecedentes criminais" e a "periculosidade" dos operários. Assim é que José de Alexandre passou a ser considerado pela imprensa com "um dos principais comunistas de Nova Lima", dirigente máximo do sindicato e ex-presidente da Federação dos Trabalhadores na Indústria Extrativa de Minério, cuja influência não se restringia ao setor sindicalista, desde que tinha vinculações muito mais amplas com influentes comunistas do país e até do exterior, tendo realizado viagens à Polônia, Checoslováquia e União Soviética.
o encorporado movimento sindical de Nova Lima, que acabara de ser desativado pela Revolução de 64, não colocava todos os seus participantes a simplesmente contemplar um passado de intensas atividades. Pelo contrário, aquele 1º de abril representava o marco de duras e penosas adversidades. Em torno de 30 pessoas foram presas naquele dia e nos subsequentes, outras perto de 250 tiveram que responder inquérito perante os agentes do Golpe. Inquérito dentro da Ditadura Militar, arbitrários, comandados por agentes muito fanáticos. Alguns "mais realistas que o rei". Amargaram por vários anos todo tipo de agressões e violências.
Há um ledo engano nos que pensam que a luta de classe e o confronto em Nova Lima entre trabalhadores e classe dominante, com a presença de atuantes comunistas, tiveram seu auge em 1964, na queda do governo João Goulart, e com os protagonistas deste período. Nos anos 40 foram registrados vários impasses nas relações dos mineiros com a empresa exploradora do ouro e do diamante, que sempre contou com a simpatia e colaboração das forças dominantes.
Já no início da década de 30, foi criado o Sindicato dos Mineiros, sob a influência de poucos comunistas. Pouco depois chegaram os cristãos e se envolveram na mesma luta.
Quando da pluraridade sindical vigente de 1934 a 1937, a empresa estimulou a criação de um segundo sindicato dócil aos patrões para obstruir o trabalho autêntico. Era o sindicato de Cima, como passou a ser chamado, enquanto o verdadeiro era o de Baixo. Este prevaleceu e ficou para a história. O de cima perdeu-se na névoa do tempo. Era só impostura.
Mas os pelegos ligados à empresa em troca de pequenos favores não desistiam. Fundaram outra entidade com o objetivo de atrapalhar a luta do Sindicato, a União Nova-limense de Assistência Social, a UNAS. Não alcançaram o objetivo. Fracassou em seguida.
Entre as enormes adversidades enfrentadas pelo Sindicato de Baixo, a mais traumática foi a dispensa pela empresa de seus 17 fundadores em 1936. Todavia, nada esmoria o idealismo da liderança operária. O resultado das campanhas que se repercutiam foi manifesto. Férias, redução da jornada, horas extras, adicional noturno, insalubridade, melhor atendimento a saúde, moradia foram conquistas notáveis dos trabalhadores, alcançadas a ferro e fogo.
Confrontos, inclusive verbais e físicos, foram registrados. Em 1948/9, houve duradoura greve geral que culminou com a demissão de 51 trabalhadores. O enfrentamento chegou ao uso de armas de fogo nas ruas de Nova Lima, resultando na morte de três pessoas, sendo uma delas o líder William Dias Gomes. Pouco depois seria morto outro líder operário comunista, José dos Santos em condições estranhas. A morte do destacado líder William se deu em circunstâncias de alta dramaticidade. O envolvimento da empresa no sentido de estimular atitudes mais violentas ficou notório. Era tradição a liberação de algumas turmas para acompanharem o enterro de mineiro morto. No de William não houve qualquer liberação, mesmo se tratando de um líder assassinado. A família, mãe, mulher e filhos contaram com poucos mineiros que foram presos na entrada do cemitério. Foi um período de grande crise.
Em 1952, a polícia prendeu o líder, Presidente da União Geral dos Trabalhadores Mineiros, Anélio Marques Guimarães, muito querido entre os trabalhadores. Era comunista convicto. Preso em Belo Horizonte, foi levado para Nova Lima onde respondeu minucioso interrogatório e, em seguida, para Rio Acima. Nesse translado, foi possível verificar a estreita ligação da empresa empregadora com as autoridades policiais: documentos nos dão conta de que o carro utilizado nessa operação pertencia a Cia. Morro Velho, um automóvel cinza, cujo motorista, Manezinho, era funcionário da dita empresa.
Muitos eram os laços que ligavam patrões e autoridades, a ponto da Morro Velho merecer a confiança do serviço secreto para minuciosas informações sobre a vida dos trabalhadores. Era só a Cia. requerer e já vinha a ficha completa de cada um.
Por estas e por outras, demonstra-se sem grande esforço, a situação conflitiva existente ali há mais tempo. Nova Lima foi sempre um barril de pólvora, não apenas para explodir minério.