Exemplar é a sequência de fatos duramente reais da fuga de José Alexandre, o presidente do sindicato, destituído sem aviso e sem processo, que, fugindo no fim da assembléia desfeita pela força da polícia militar, no dia 1º de abril, passou por peripécias e desventuras de conteúdo surrealista. Como já se disse teve que escapar pela porta dos fundos e, com a simples roupa do corpo, mal tendo tempo de pegar um embornal com pães, que foram seu único alimento por vários dias.
Saiu apressadamente, escondendo-se nuns eucaliptos atrás do Hospital Nossa Senhora de Lourdes, nesta cidade, saindo de tal esconderijo na noite de dois de abril, seguindo para Cachoeira do Campo, conduzido pelo motorista Denílson, que tem um automóvel na praça de Nova Lima; que em Cachoeira se abrigou na casa de João Bosco, presidente do sindicato daquela cidade e seu conhecido de uns dois anos, ali ficando por uns cindo ou seis dias, saindo no domingo em companhia de João Bosco que, a essa altura, também, já estava com as barbas de molho, "escondendo-se ambos numa mata de onde saíram à noite para o lugar denominado Cumbe", numa extração de mármore, onde passaram noite num cômodo sem cama. No dia seguinte, seguiu para Dom Bosco, onde passou um dia, continuando no seu periplo no dia seguinte, indo de trem para Honório Bicalho.
José Alexandre tinha conciência de que, se demorasse em qualquer lugar, seria pego; por isso precisava girar constantemente. Em Bicalho não permaneceu, era um lugar muito visado. Com destino a Raposos, caminhou linha abaixo, dormindo aquela noite numa casa de turma na beira da linha. Mudou de ideia à noite e, no dia seguinte, rumou para a Morro Velho, aonde também não chegou. Encontrou no caminho um rancho, numa roça de milho, no fundo de uma grota, onde ficou por quatro ou cinco dias, alimentando-se dos pães de que já se falou. Dali seguiu para um lugar chamado Dominguinho, onde havia uma plantação de eucaliptos.
Temendo ali permanecer porque eram muitos os trabalhadores naquele plantio, só esperou escurecer, voltando à linha férrea, caminhando longa distância até chegar à casa de sua sobrinha Maria, em Raposos, permanecendo dez ou doze dias, para incômodo e preocupação dos parentes, recomendados que não comentassem a sua presença ali. Nessa casa recebeu visita do irmão Antônio, filhos e sua mãe. Mas não podia parar muito tempo. Mudou-se para a casa de José batista Costa, seu amigo e colega como mineiro, não podendo contudo, ficar por muito tempo, pois José Batista era muito pobre e doente, permanecendo ali por seis dias. Voltando a Honório Bicalho a pé numa distância de vários quilômetros, e não podendo ali permanecer porque o lugar era vasculhado todos os dias pelas forças que serviam ao Golpe, rumou de trem para São Paulo, onde desembarcou nos últimos dias de maio. Hospedou-se na casa de José Pereira Marinho, e depois de passar alguns dias em um barracão, foi preso na casa desse amigo paulista e conduzido a Belo Horizonte.
Tudo isso porque era presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Mina Morro Velho, na data do golpe militar que derrubou o Governo João Goulart, e que implantou, no país, a ditadura militar que duraria mais de vinte anos.
Não há registro muito claro nos autos da devassa de Nova Lima sobre as prisões, nem de quanto tempo duraram. Sabe-se que muitos foram presos; mas, não há dados de quando foram soltos. Tudo era muito arbitrário. Prendiam e soltavam sem qualquer aviso. Alguns ficaram presos por meses e até por anos, como nos casos dos líderes Riani, Dazinho e Bambirra, julgados ou não pela Justiça Militar. Grande foi o número de presos por longo tempo, posteriormente, absolvido pela justiça.
O delegado Diocélio acusou 276 pessoas de "comunistas" que não passavam de trabalhadores humildes, que enganjados na luta pela melhoria das condições sub-humanas de trabalho na Mina de Morro Velho. No início da década de 60 do século passado, era só ter um senso crítico mediano para logo o trabalhador das minas ser considerado comunista. As condições penosas de um trabalho pesado e rude, a reunião de muitos operários num só ambiente e a tradição de direção autoritária da empresa empregadora combinavam com a propaganda intensa de que, na União Soviética, a partir de 1917, a classe operária havia espalhado por boa parte do mundo, difundindo a idéia de igualdade plena. Uma generosa utopia que soava docemente aos ouvidos de trabalhadores em muitas partes do mundo.
A utopia da igualdade plena do regime comunista havia, na verdade, se enraizado nos trabalhadores mais esclarecidos de Nova Lima. Era isto que dizia, Orlando Correa, que era comunista convicto. - Temos que primazia ao trabalho, não ao capital. O capitalismo usa nosso trabalho em benefício dos poderosos.
A luta do Sindicato dos Mineiros, já há muitos anos, se alicerçava sobre essas convicções e são surpreendentes as conquistas trabalhistas que alcançaram naquela época.
É preciso considerar que desde 1950, que com muita pressão conseguiram muitas conquistas para os trabalhadores.
Melhorou muito a assistência a saúde, foi construído o primeiro conjunto de casas para moradia e foram os primeiros trabalhadores brasileiros a ganhar o direito ao acréscimo salarial por insalubridade e horário noturno. Por mão beijada não vinha nada! O Sindicato foi pioneiro no Brasil nesses avanços.
Os agentes do golpe militar estavam convencidos do bem que faziam ao Brasil e questionavam os defensores da resistência com argumentos contundentes ao afirmarem que estes não queriam enxergar o risco que o País corria. Não agissem como o fizeram e, em poucos dias, com o apoio presidencial, teríamos o comunismo implantado na Terra de Santa Cruz. Essa era a voz que ecoava desde o Comando Supremo da Revolução.
Para os golpistas, a aliança de comunistas, bem orientados do exterior com socialistas de todas as tendências, esquerda católica, oportunistas de toda espécie, inocentes úteis e ainda com a complacência do poder central, faria do Brasil uma colônia soviética a qualquer hora. Vivíamos um processo de revolução contrária às nossas tradições, e o que houve no dia 31 de março, na verdade, foi uma contra-revolução, afirmavam convictos. E, concluíam, enfáticos: será que não vêem o avanço na organização dos "Grupos dos Onze" ou "Comandos Brizolistas", como queiram. A desenvoltura dos comunistas é impressionante! Mandam, desmandam. Fazem, desfazem! E as Forças Armadas, responsáveis pela tranquilidade e pela democracia neste País, podem ficar de braços cruzados? - indagavam.
Para os agentes do Golpe de 64 e para a polícia de Nova Lima, agitadores locais como Militão, Orlando Correa, Maria Silva, José Alexandre, Félix Feliciano, José Pequeno, Jesú Gonçalves, Benigno Azevedo, Dr. Juvenal e tantos outros, com a cobertura de grandes líderes nacionais da subversão como Brizola, Riani, Dazinho, Bambirra, não poderiam continuar pregando a desordem e a violência, com a desagregação da família brasileira. Era preciso dar um basta nisso, estavam convencidos.
Para apurar a ação dos "subversivos" de Nova Lima, o Delegado Diocélio de Oliveira Cabral estava definitivamente convicto do perigo comunista, e, por isto, se considerava apto como nenhum outro, a enquadrar todos os subversivos que atuavam ali em Nova Lima. Afinal, desde 1948 já trabalhara na apuração de atividades de agitadores no meio trabalhista.
Embora a repressão tenha se instalado arbitrariamente em Nova Lima no dia 1º de abril, é importante observar que todas as ações desenvolvidas naqueles primeiros vinte e poucos dias da revolução não tiveram qualquer suporte jurídico que as legitimassem. O inquérito policial só foi oficialmente aberto pelo Doutor Diocélio em 24 de abril. Do dia do golpe até essa data, durante esses 24 dias, tudo foi feito autoritariamente, sem qualquer registro, inclusive a prisão de mais de 30 cidadãos. O delegado e os policiais vasculharam a cidade e a redondeza, e ouviram "desdde o pároco até a cafetina", no dizer das ruas. Por cautela e por maior cobertura, o delegado quis ter ao seu lado no inquérito o Promotor de Justiça da Comarca, Dr. Saad Bedran, de ligações íntimas com a empresa mineradora.
A Câmara Municipal de Nova Lima foi transformada em Delegacia de Polícia. O delegado instalou-se ali e, por impusição da ditadura, fez a "delegacia" funcionar das 8 às 22 horas, todos os dias, às vezes, pela madrugada, por mais de 60 dias, interrogando a cidade inteira, fazendo apreensões indiscriminadas, mandando invadir domicílios, inclusive, à noite, decretando presões ao seu talante.
Conforme já se disse e muito ainda se vai dizer, o Dr. Diocélio era extremamente cioso de seu dever investigativo. Mais que simplesmente apurar tudo o que tinha ocorrido, ele se achava no dever de provar que a subversão comunista estava muito arraigada entre os mineiros de Morro Velho, e era uma forte ameaça à tranquilidade da família brasileira. Foi com esta convicção que comandou verdadeira varredura em Nova Lima, nos dias seguintes àquele 1º de abril, na busca não só de "comunistas" como, também, de armas e explosivos que pudessem ser utilizados em atentados terroristas, embora não se conhecesse qualquer ato nesse sentido durante todo o tempo. Por saber que a mineração fazia uso de explosivos para facilitar a retirada do minério nobre, o delegado dedicou cuidado especial na procura de dinamite, tendo chegado a vasculhar até debaixo das camas dos operários. Uma verdadeira paranóia!
A esquizofrenia era tamanha que qualquer boato dava origem às mais minuciosas apurações e complicadas diligências policiais. Espalhou-se, por exemplo, pela cidade, por bocas de matildes, dita em cada esquina, sem autor conhecido, a insólita e fantástica história da existência de armas e explosivos enterrados ao lado do valo e dos bambus fque formavam a cerca natural lá no topo do Morro dos Cabritos, na periferia da área urbana. Da praça central da cidade se via o bambual. O sepultamento das armas e explosivos, em condições tão peculiares, teria sido obra dos participantes dos "Grupos dos Onze", que preparavam para a revolução comunista.
Quando tal barulho chegou ao ouvido dos agentes do Golpe Militar, de início, soou como galhofa de algum desocupado. Não se deu maior importância, mas, com o tempo, havia muitas Matildes na cidade, e a onda cresceu. Foi quando o delegado encarregado das apurações determinou que um grupo de policiais equipados com enxadas, picaretas, pás e enxadões subissem o morro em busca do material bélico enterrado. Só se chegava ao local a pé, em acesso muito íngreme e difícil. Para lá foram 12 policiais. Durante quatro ou cinco dias reviraram montanhas de terra. As pessoas cá na cidade, vendo aquilo, certamente muitos que haviam criado a fantasia, faziam galhofas escondidas, e se divertiam com aquela aventura. Grande foi o esforço dos soldados que furaram o morro como se fossem mineiros à procura de ouro ou diamante. Mas, o que buscavam, não havia ali. As chacotas dobre aquela desventura duram até hoje.
As diligências policiais na busca de armas e "material subversivo" foram tão minuciosas e radicais que chegaram à apreensão de brindes e miniaturas trazidas pelos sindicalistas em suas viagens à Europa, como se tais objetos fossem provas incontestes da ideologia dos réus. Se o relato aqui não for absolutamente real, difícil será a qualquer um acreditar que, ao fim de intensas buscas, as forças revolucionárias conseguiram apreender os seguintes brindes:
- um escudo e uma máscara de gás da Polônia, com José Alexandre;
- três lanternas, uma de carbureto e duas de pilha, com Alberto Lemos Mota;
- uma miniatura de Sputinik trazida da Rússia, com Militão Ferreira Dias;
- um cinzeiro de cristal trazido da Tchecolosváquia, com Sebastião de Oliveira;
- uma estátua de sal, trazida da Polônia, com José Alexandre;
- um vidro contendo pedras do Mar Negro, também com José Alexandre;
- uma caixa de plático contendo partículas de ossos de seres humanos, oriundos de campo de concentração e cremação na Alemanha Nazista.
Todas essas lembranças, certamente muito caras aos seus proprietários, foram surrupiadas pelos agentes do golpe sob o argumento de que era material subversivo. Imagine o internauta o valor simbólico dessas peças ornamentais para os trabalhadores de uma mineração que tiveram a rara oportunidade de viajar a Europa, para participarem de congressos e de seminários trabalhistas. A censura era total e absoluta, combatiam-se os comunistas mesmo quando eles se opunham ao nazismo. Até poderia suscitar a dúvida de que os golpistas pudessem ter simpatias nazistas. Afinal, faziam uso de métodos muito parecidos com os praticados por estes.
Mas, ainda, como já se disse, é necessário ressaltar as "incríveis" apreensões efetuadas no correr das investigações: bastante material impresso, jornais, revistas, livros, alguns de origem comunista, outros como apostila de curso de alfabetização. Todo este material apreendido foi devidamente relacionado no fim do relatório do inquérito presidido pelo Dr. Diocélio Cabral e anexado ao processo.